Um Dia, o Medo Conheceu o Amor

E LOGO VIAJARAM PARA O DESERTO

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Um dia, o Amor e o medo acharam-se um diante do outro. O Amor era grande e radioso. O medo era pequeno e escuro.

Com um sorriso feito de sol, o Amor convidou o medo para um passeio no deserto. O medo assentiu, desconfiado. 

Até onde a vista alcançava, sob um céu de azul seco, o deserto parecia entrar no horizonte.

O ar aquecia como um forno, porém o Amor aspirava-o como que se uma brisa primaveril. Pelo contrário, o medo abafava contrariado dentro de si. Nunca experimentara o calor, apenas o frio húmido.

O Amor falava e gesticulava muito. O medo ouvia e depreciava cada palavra. Sempre julgara a maioria das palavras aborrecidas e desnecessárias, sobretudo as escritas. Por isso, nunca lera coisa nenhuma.

O Amor contava a história do pássaro livre que voava com o vento. O medo dava risadas de troça, entre uma ou outra tolice que dizia. E exactamente no meio de cada risada e tolice, lançava um longo bocejo.

passaro-que-voa«Era um pássaro valente!», disse o Amor. «Sobrevoou todos os países grandes e pequenos deste mundo. Em todos eles viu a mesma coisa: as manhãs nascem com o Sol, as noites com a Lua; a Terra dá alimento e vida, o céu dá protecção e sonhos; os seres sorriem quando felizes e choram quando tristes. Tudo lhe pareceu igual, tanto nos países grandes como nos países pequenos.»

O medo nunca se olhou

Embora intrigado, o medo nada disse ao sentir-se, de súbito, um bocadinho mais largo e mais claro. Na verdade, nunca se vira, nunca conseguira se olhar diante de um espelho ou de uma poça de água. Julgava até não ter corpo; quase invisível, diria. Com efeito, nunca pensara seriamente sobre isso; tão pouco alguma vez se preocupara. Sabia existir, e isso bastava.

Porém, de alguma forma, com surpresa, notou que era bem diferente do Amor, que era imenso e luminoso. Não sabia qual a razão dessa diferença. Admitia que não conhecia o mundo. Sempre estivera certo de que nada havia nele que o pudesse impressionar. Vivia orgulhosamente só numa caverna nas terras altas, pensava. Mas num momento estranho, pensou diferente.

Entretanto, o Amor observava o ondular de uma serpente. Aquele movimento fascinava, e o Amor deliciava-se como uma criança solta.

A velha serpente do deserto

Passado uns instantes, a velha serpente parou e olhou o Amor. Reconheceram-se, e ambos rejubilaram. Em tempos raros e espantosos, haviam-se abraçado. Naquele momento, no espaço entre cada palavra afectuosa, também falou um admirável silêncio dentro de um longo abraço. sol-e-luaComo aquele silêncio que surge no preciso momento em que o Sol e a Lua se olham e se afastam lá no horizonte: assim o dia faz-se noite, numa das faces do mundo; ao passo que na outra face o dia sucede à noite.

O medo soltou um grito muito medroso. Um grito deveras tímido, pois tinha acabado de ficar ainda mais volumoso e não teve força para barulhos raivosos.

«Mas que escuro tão medroso!», gracejou a serpente. Como se não tivesse tempo a perder, sugeriu: «Ora bem, queres vir comigo até ao oásis mais próximo?»

«Não!», respondeu o medo. «Não há lá nada que eu queira ver.» Enquanto dizia estas palavras, pequenas fagulhas de fogo soltavam-se do fundo do seu negrume. Os antigos diziam que eram fagulhas que fugiam dos corpos tristes.

O Amor estendeu a mão ao medo e disse: «Vem, por favor. Iremos sempre estar contigo.»

O medo amoleceu com a ternura do Amor. Não sabia o que aquilo era. Nem reconhecia o que naquele instante mudou em si. Sempre fora medo, e julgava não ser possível ser outra coisa que não o que sempre foi. Porém, mais uma vez, viu o seu tamanho aumentar e o escuro tornar-se ainda mais claro. Com vontade, e quase de imediato, deu a mão ao Amor. A princípio, soltou um ronco de desconforto; mas logo um calor maternal atravessou a sua escuridão. Apesar de estranho, deixou-se estar.

A alegria do oásis

Pouco tempo passado, lá seguiram os três em direcção ao oásis: o Amor, o medo e a serpente.

Árvores vigorosas começavam a ganhar forma lá ao fundo. Demoravam-se ali há tanto tempo que sabiam todos os segredos do deserto, todas as memórias que o tempo evocava. Diante das árvores, uma lagoa calma e silenciosa parecia descansar. Afinal, o oásis sempre prometera beleza — e nunca ninguém foi enganado nessa promessa.

O Amor caiu na água e chapinhou de braços soltos. Maravilhado, soltava risadas inocentes.

arvoreA serpente espreguiçou-se sob uma árvore corpulenta. Há muito que guardara em si a alegria do oásis. Agora, em silêncio, atravessava a ponte feita de luz que a conduzia a todas as terras que desejasse: à terra dos Elefantes que Riem, dos Meninos que Criam Sonhos, das Árvores Contadoras de Histórias e a muitas outras terras maravilhosas.

Enquanto isso, o medo encolhia-se aborrecido. Não achava graça a nada e nada tinha para fazer, a não ser aborrecer-se naquele aborrecimento. Mesmo assim, resolveu fazer o que nunca fizera: inclinar-se sobre a água e olhar bem para dentro dela. Assim permaneceu por algum tempo.

Como sabem, a água — a Terra, na sua totalidade — conhece bem aqueles que a olham e que, com delicada atenção, escolhem ouvir as suas muitas histórias. Talvez o medo, desta vez, quisesse algo mais que ser o que sempre foi. Talvez quisesse, afinal, abrir um bocadinho o coração e atrever-se a escutar.

O pássaro livre

Entretanto, lá ao longe, começou o canto murmurado do Sol. Ele cantava uma história triste: a história do medo. Um dia, o medo fechara-se numa caverna húmida e fria. Por muito tempo não permitiu que ninguém o retirasse de lá. Era a sua casa, nunca conhecera outra, nem tão pouco sabia existir outra. Até que, num dia feliz, o medo conheceu o Amor, e logo viajaram para o deserto. Lá, o medo debruçou-se sobre as águas calmas de um oásis. Nunca até então vira o seu próprio rosto, a sua própria forma, nunca sequer pensara que pudesse ter forma; mas tinha: a de uma bola escura, quase sem vida.

Estava o medo em completo espanto a olhar para si mesmo, já há um bom tempo, quando, num momento raro e extraordinário, o deserto cobriu-se de púrpura; e o pássaro livre, que voava com o vento, pousou na copa de uma árvore e entoou um canto de Amor.

À medida que o Sol cantava a história triste, o medo aumentava de tamanho e perdia as suas sombras escuras. Até que, por fim, o Sol acolheu o que restava do medo e transformou-o num amoroso raio de Luz. Ainda hoje, esse raio estende-se pelos quatro cantos do mundo.passaro

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