Ishmael e o Menino de Olhar Grande

Ishmael olhava as águas turvas do rio Jordão — Síria, Jordânia, Israel e Palestina estão fundidas nesse rio sacral que carrega parte da história da humanidade, pesada com vergonha e ferida —, o pensamento pairava-lhe pelo corpo, a respiração estava desalentada, e os traços no seu velho rosto já não se surpreendiam com coisa nenhuma.

Um menino de olhar grande e ar etéreo aproximou-se e disse: «As tuas ovelhas afastaram-se, estão entre os carvalhos altos ao redor da tenda antiga». Ishmael segurava firme o velho cajado, mas a sua voz tropeçou assim que olhou para o inesperado menino. Num instante caiu num sufocado choro que o conduziu a imagens de sofrimento e morte. Os seus olhos rememoravam cada rosto mortificado, apanhados pela luta, pela desilusão, pela fome, pela inclemente vontade contrária.

O menino continuava imóvel. Observava Ishmael com atenção elevada, tal qual um ancião venerável observa o seu pupilo de espírito sedento. Finalmente, o velho pastor ergueu a cabeça e observou demoradamente aquela pequena figura com os olhos muito abertos, cheios de reverência. «As ovelhas estão bem», disse delicadamente o menino. «Sim, agora eu sei», murmurou Ishmael. Entre o pastor de traços cansados e o menino de olhar grande não havia estranheza, suspeição, apenas um reconhecimento profundo que surpreendentemente ocupou todo o espaço, muito para além das montanhas distantes que abraçavam a planície árida e triste.

Detido no mundo da sombra

Na última hora da tarde, sob a luz crepuscular, Ishmael e o menino navegavam pelo rio Jordão num pequeno barco. Ishmael observava o sublime menino, cuja luz que irradiava lhe recordava a Natureza, a sua força terna, que compreende os movimentos e a simultaneidade da vida. A um dado momento, fixou os olhos naquela paisagem solitária, adensada pelo Inverno. E a sua alma experimentava a morte, a dissolução, o tumulto dos ciclos, mas logo regressava àquele menino, àquele rosto extraordinário que penetrara no âmago do mundo sob formas cúmplices. Repentinamente, ouviu: «Vamos parar ali, perto daquela árvore inclinada».

Ishmael e o menino seguiram um carreiro que os afastou da margem do rio. Em pouco tempo, encontravam-se diante de um campo grande, plano, apenas com alguns arbustos dispersos. Ishmael conhecia bem este espaço de mil memórias, então seco e despido, outrora povoado de árvores copiosas que pareciam mover-se na mesma cadência vibrante dos milhares de pessoas que ali tantas vezes cantaram, dançaram, celebraram, amaram. O menino de olhar grande sorriu afectuosamente, porém, em Ishmael caminhava a sombra — sentia-se detido no mundo da vergonha e da ferida. Lágrimas corriam-lhe pelo rosto das mil memórias, e o seu coração encheu-se por completo de solidão e cansaço. Caiu pesado de joelhos na terra já escurecida pela penumbra e implorou: «Menino dos mais belos olhos, mostra-me, mostra-me o caminho, acolhe-me no teu coração, na tua graça, no teu amor». Ishmael encolhia-se na sua dor, que era a do comerciante caído na guerrilha, da menina órfã desencantada, do assassino de olhar vazio, da mãe cravada por lágrimas, e de todos os seres que foram perpassados pela fatalidade.

A visão do novo mundo

O menino ajoelhou-se e abraçou longamente Ishmael. Nenhumas palavras podem compreender o que atravessou aquele momento. O tempo perdeu-se no seu próprio jogo, no interior da sua inexistência, e tudo o que era pó, morte, aversão, desfez-se ali mesmo para nada restar. O que dominava era o halo da intimidade, do reconhecimento profundo. Ishmael sentiu-se fundir no seu próprio corpo, absorvendo a sua completude, o amor que sustenta o mundo. Regressou a si, à quietude do seu coração e à sabedoria da vida. O menino soltou uma risada feliz e terna, e o olhar grande tomou a dimensão de um oceano, da mais vasta planície, da mais extraordinária montanha. No momento seguinte, num sopro divino, a majestosa árvore formava-se ali, elevada sobre a terra, no centro do campo grande, cintilando cores de pérola e de ouro. Ao seu redor, como num palco, passavam os incontáveis rostos da dor, fecundados no berço da civilização, colhidos pela voracidade da história. Porém, os rostos tinham-se transformado, não se via dor, dissolução, olhares enegrecidos, mas a paz, a confissão viva da mutabilidade da vida, do amor que derrama, da respiração do Universo. Perante esta visão, mergulhado no seu tecido íntimo, Ishmael recordou-se do novo mundo.
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Pintura: Boca do Rio Jordão (1854), de Nikanor Chernetsov

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