Ouviam-se cantar os pardais, o sibilar brando do vento, o ruído dos riachos. A estes sons misturava-se o murmúrio da sua própria voz que monologava dentro, plangente e arrastada. O corpo avançava lento, atraído por um halo de ópio que parecia atravessar todo o espaço. Os grandes troncos de bambus pareciam seres ondulantes que comunicavam num outro plano, num outro sistema, numa intimidade única onde não cabe as coisas mundanas.
Lá fora, a vida agitava-se dentre infindáveis formas; dentro de Hana, porém, ela parecia consumir-se num único filamento, quebrado e sem vigor.
Satoru, o amigo de sempre, acabara de morrer. Com Satoru, Hana amara a vida tal qual um pássaro livre. Viu nuvens, árvores, riachos e rios, animais, montanhas colossais, falésias, céus profundos, constelações vivas, flores, plantações de arroz, sublimes florestas de cerejeiras, pássaros que anunciam a alegria, rios audazes. O mundo era limpo, integral.
Muitas vezes, de noite, deitada sobre juncos humedecidos, junto à margem do grande rio da floresta, pensava sobre a cidade, de como seria habitá-la. Tinha ouvido histórias cruas, de homens e mulheres que procuraram as sumptuosidades da vida na cidade, a felicidade, mas que foram esmagados por ela, dominados pelo orgulho, pela vaidade, pelo desvario, pelas paixões esvaziadas. A vida tornara-se um jogo de xadrez, cujas regras todos acabavam por aprender mas a que as suas almas não se acomodavam.
Tinha ouvido todas essas histórias atravessadas pela sombra. Contudo, também Hana procurara a cidade. Mas agora, por entre os grandes troncos de bambus, chorava a vida inteira que se lhe fugira enquanto se fascinava por entre quimonos e maquilhagem, poesia e música, dança e canto, vozes e histórias. Tudo isso era imenso. Tudo isso enchia uma vida. No auge da sua juventude era a única voz que escutava, aquela que corria à sua frente, brilhante como pérolas.
Com o avançar dos anos, porém, a graciosidade e a disciplina dos gestos tornaram-se banais. Tudo o que outrora aprendeu perdeu importância. Muitas das pessoas que observava pareciam ter sido tocadas por uma doença nocturna, solitária, que alimentava os sentidos mas debilitava o coração.
Satoru foi o que a Natureza quis. De espírito elevado e livre, sempre avançara sobre o caminho sagrado onde se ouve a voz comovente das montanhas, das rochas, dos animais, das estrelas, dos lagos. Transportara a alegria das coisas vivas tal como o rio mais selvagem pulsa cheio de alma, alheado do mundo das sombras.
Com Satoru tinha aprendido a abolir o tempo, a ser feliz no instante, a servir a completude da alma, a encher-se com a visão das estações, o rumor dos ventos e o fulgor do sol, a acompanhar o movimento da respiração, a deter-se no nada, a compreender a língua dos animais, a entrar na memória das árvores, a ouvir a antiga lei da vida.
Atraída por mil pensamentos, Hana sentiu-se envolvida por uma profunda tristeza. Sentia que a maior parte da sua vida tinha sido desabitada, inútil, um engano. Compreendeu que não era mais a menina, mas a mulher de mil faces. Compreendeu que nada de verdadeiramente elevado existe fora do alcance da ave livre que habita no coração de todas as coisas. Compreendeu que todo o seu corpo buscava escutar uma antiga melodia.
Gradualmente, aquietou-se. Permaneceu de olhos fechados, e um longo tempo passou, até que ficou presa unicamente a si, ao centro onde habita o coração, enquanto a vida lá fora se agitava. Num sopro mágico, os grandes troncos de bambus que a rodeavam recordavam-lhe a transitoriedade da vida, a insignificância do tempo sobre as formas, a dança da alma, da Natureza, do Universo, e que o regresso a si mesma era inevitável.