Na Consciência de Nós Mesmos

homem-inspiracao

*O que é a verdadeira inspiração e o que nos traz*

 Quando penso na palavra inspiração — que compreensivelmente pode conduzir a diversas acepções — , é-me fácil, porque natural, centrar-me no coração da palavra. Talvez porque ela me inspira, me traz muito, tudo, sem eu ainda saber integralmente o quê; talvez ela me passe um brilho. E é claro que é sempre no coração das coisas que devemos atentar, pois só aí residem as grandes significações, transformações e viagens. Creio que a palavra inspiração traduz verdadeiramente essa realidade.

Considerando o que me propus neste texto, é útil começar por observar a etimologia da palavra. Notemos que a palavra «inspiração» vem do latim īnspirātio e do verbo inspirāre. A palavra inspirar (inspirāre) — «‘introduzir ar nos pulmões, incutir, infundir, fazer penetrar no ânimo’»[1] — é composta pelo sufixo in (em) e a raiz spīrāre (respirar). Inspirāre é, então, infundir animação, por influência.

Ao partir a palavra inglesa inspiration (inspiração) talvez nos surja mais claro: in (em) spirit (espírito). Ou seja, ser inspiração, viver num estado de inspiração, significa estar em espírito, viver de acordo com o espírito, andar pelo caminho do espírito, estar alinhado com o Eu divino interno; o mesmo é dizer: deixar-se ser vida — infundido, animado, influenciado, inspirado pelo espírito.

O espírito, a essência da consciência que reside em cada um de nós, aguarda o momento em que se poderá expressar. Quando vivemos num estado de alegria, amor, paz, criatividade,  abundância, saúde, vitalidade, liberdade estamos a permitir puramente a expressão do espírito. Quando nos abrimos à inspiração, recebemos da Fonte mensagens inspiradoras que nos instiga, mobiliza, orienta, nos coloca diante das circunstâncias certas (verdadeiras) numa sincronicidade perfeita criada pelo espírito, mas desenhada primeiramente pelo indivíduo.

Vaguear no território livre da inspiração

krishnamurti-inspiracao-1Numa outra perspectiva, a noção de inspiração adquire outra significação, talvez mais superficial. O filósofo indiano Jiddu Krishnamurti aplica a palavra inspiração como sinónimo de estímulo, sendo o estímulo uma mera distracção. Porém, admite uma outra dimensão essencial da inspiração —  mas sobre esta abordarei mais adiante.

O filósofo revela que a procura e o desejo de inspiração ocorre quando o indivíduo se sente em conflito, num estado de confusão, tristeza, vazio, solidão, sem criatividade. Expressivamente afirma: «Este processo de encobrir a solidão árida é chamado de inspiração.» Porém, «a inspiração torna-se uma mera estimulação, e como com todas as estimulações, logo traz seu próprio tédio e insensibilidade».[2]

Esta procura de estimulação — de um estímulo para outro —, de inspiração — de uma inspiração para outra —, traz em si decepção e cansaço. Isto porque abordamos o problema da existência a partir de fora, no conflito da dualidade, o que entorpece a mente-coração. Quando abordamos o problema da existência a partir de dentro, não há divisão: o interior e o exterior são um só, tal como o pensador e os pensamentos. Logo, o todo é seguramente o todo, não uma disseminação de partes.

«Mas nós separamos o pensamento do pensador e de modo a tentar lidar apenas com a parte, para educar e modificar a parte, esperando com isso transformar o todo. A parte cada vez torna-se mais e mais dividida e, portanto, existe mais e mais conflito. Portanto, temos de estar preocupados com o pensador de dentro e não com a modificação da parte, seu pensamento.»[3]

Nesse processo de procura de estimulação — a chamada inspiração —, a mente-coração perde a sua sensibilidade e maleabilidade, aquela que a coloca puramente aberta e receptiva. Isto porque ela está dependente do estímulo induzido pelo exterior. Krishnamurti entende essas estimulações como sendo distracções, largamente encorajadas pela sociedade. Distracções exteriores, mundanas, tais como problemas, lutas, guerras, crises nos negócios e desentendimentos de família.[4] Mas igualmente buscamos inspiração nos outros: o mestre, o santo, o salvador torna-se uma necessidade que escraviza. Devemos libertar as correntes que nos escravizam para assim descobrir o real, que só pode ser experimentado em liberdade.[5]

As distracções são exteriores e interiores. Tal como as exteriores, as interiores acorrentam, além do mais, são de compreensão mais difícil. «O próprio pensamento-sentimento tornou-se um vaguear longe do centro, da realidade.»[6] Define-se, assim, uma nova forma de distracção, uma nova estimulação que afasta o indivíduo da compreensão de si mesmo.

A partir daqui, torna-se clara a ideia, tomando a visão de Krishnamurti, de que enquanto a mente se distrai através da estimulação ou da inspiração, tentando buscar um resultado, ela torna-se incapaz de compreender o seu próprio processo.

Krishnamurti entende a inspiração como uma distracção. Porém, ao fazer a seguinte pergunta, o filósofo coloca a inspiração num nível superiormente elevado; considera a perfeição da inspiração, a sua dimensão essencial, intuitiva: «Você já reparou que a inspiração vem quando você não está a procurá-la? Ela vem quando todas as expectativas cessaram, quando a mente-coração está quieta.»[7] Estar aberto à inspiração, sem expectativas, é, então, o âmago, pois é neste estado de ser que a inspiração se derrama em nós. Como tão claramente Krishnamurti assegura: «A inspiração vem quando estamos abertos a isso, não quando estamos a cortejá-la. Tentar ganhar inspiração através de qualquer forma de estimulação leva a todos os tipos de ilusões.»[8]

Auto-conhecimento
[descoberta criativa]

Na linha desse pensamento, em 1950, Krishnamurti afirmou:

«O auto-conhecimento é, em última análise, a única maneira de resolver os nossos inúmeros problemas, e o auto-conhecimento não pode ser um resultado, um efeito, da estimulação ou distracção. Pelo contrário, a distracção, a estimulação, e a chamada inspiração simplesmente se afastam da questão central. Certamente, sem conhecer-se fundamentalmente, radicalmente, e profundamente, sem saber todas as camadas da consciência, tanto a superficial, bem como a profunda, não existe base para o pensamento, existe? […] E, a fim de conhecer a si mesmo, nenhuma forma de distracção é útil. No entanto, a maioria de nós está preocupada com distracções.»[9]

Sem o auto-conhecimento, tudo o que fazemos e pensamos inevitavelmente nos conduz a uma «maior miséria, confusão, luta».

Como Krishnamurti salienta, «o auto-conhecimento é um processo de descoberta criativa, que é dificultado quando o pensamento-sentimento está preocupado com o ganho. A avidez por um resultado impede o florescimento do auto-conhecimento»[10], impede a fluidez da pura inspiração.

No sentido de conhecer a si mesmo, o actor, o observador, o pensador deve conhecer as suas acções, os seus pensamentos, os seus sentimentos, não para além da acção, mas em acção, em relacionamento — a sua relação com as ideias, as pessoas, as coisas, o dinheiro. É só nessa relação que é possível o auto-conhecimento.[11]

Se inspiração é, e retomando palavras anteriores, infundir animação, por influência, in (em) spirit (espírito, andar pelo caminho do espírito, deixar-se ser vida (infundido, animado, influenciado, inspirado pelo espírito)), onde, tal como demonstrado, o auto-conhecimento surge primordial, ausente de distracções (estímulos), numa viagem dentro de si próprio, então julgo ser seguro afirmar que a inspiração essencial — aquela que «vem quando todas as expectativas cessaram, quando a mente-coração está quieta» — acontece na comunhão com o espírito, em conexão com a fonte divina, quando somos amor e declaramos a nossa verdade interna.

É nesse estado de amor, nesse auto-conhecimento limpo, puro, que brota a verdadeira inspiração. Ela surge como uma intuição, uma imersão da alma no movimento de um pensamento (tocante), de uma emoção (inesperada), de um sentimento (puro), conduzindo-nos a uma escolha. Assim inspirados, vivemos uma vida com propósito, em harmonia com a verdade.

É somente nesta existência integralmente livre que encontramos o Real, a Verdade. Só então, seguramente, a vida declara-se em múltiplas formas de amor, alegria, paz, abundância. No encontro com a inspiração certamente nos reconheceremos, certamente acordaremos de um sonho.


Referências
[1] Cunha, G. (1986). Dicionário Etimológico. Rio de Janeiro, Nova Fronteira
[2] Conversation 184, California, USA, 17 June, 1945
[3] Idem, ibidem
[4] First Public Talk, New York, 4 June, 1950, Collected Works, Volume 6
[5] Conversation 191, Ojai, California, USA, 29 July, 1945
[6] Conversation 184, California, USA, 17 June, 1945
[7] Idem, ibidem
[8] Krisnamurti, J.. Education and the Significance of Life, pag.121
[9] First Public Talk, New York, 4 June, 1950, Collected Works, Volume 6
[10] Conversation 191, Ojai, California, USA, 29 July, 1945
[11] First Public Talk, New York, 4 June, 1950, Collected Works, Volume 6

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