O primeiro movimento {a história…
Visto serem as primeiras palavras aqui escritas, dedico-as ao primordial impulso: a respiração.
A respiração é o fio que sustenta e atravessa todas as manifestações: é o primeiro movimento, a força evolucionária que marca o ritmo das pulsões primordiais da vida, da Natureza, da criação… da história.
Inspirada pelo sentido da respiração, eis que me chegou uma história; uma história inacabada, sem fim, como todas aquelas que são reais. Tal como a vida, ela inicia-se numa grande inspiração.
O menino que abraçou o arco-íris
Sete cores esbatidas e líquidas ergueram-se lá no alto, atravessando o mundo de uma ponta a outra.
Os grandes olhos negros do Tomé permaneciam abertos enquanto se firmavam no arco-íris; estavam tão compenetrados que, num momento único, o espantoso aconteceu: as sete cores foram aspiradas pelas suas narinas.
O Tomé albergava um mundo: o do arco-íris.
Tomé escutou o grande silêncio
Uma força incomparável tinha avançado para o interior do seu nariz, seguido todo o caminho até à barriga, onde se instalara com um sonoro ronco de satisfação. Logo após a esse estranho ruído trovejante, que se assemelhava a um bater de panelas velhas, Tomé sentiu arrepios de frio, imediatas ondas de calor e um formigueiro que lhe coçou as paredes internas da barriga. Tudo isto acentuou-se até ao ponto de rebolar pela terra lamacenta.
Porém, Tomé permanecia num silêncio calmo, convencido de que aquela era a ordem em que o fenómeno se cumpria. Assim como uma flor de lótus que muito antes de ser flor é uma pequenina semente enredada no curso da criação. São assim os ritmos da vida, e um pequeno menino sabia que tudo tem o seu tempo.
Os grandes olhos negros do Tomé continuavam abertos e firmes, enquanto permanecia deitado de costas no chão lamacento. Olhava o céu azul pintado por grandes nuvens de cor cinza-esbranquiçada, onde já não mais se encontrava a grande ponte das sete cores. As mãos pequeninas pousavam na barriga como um abraço fraterno. Estava feliz e sorria. O arco-íris repousava agora dentro de si.
Daí a pouco, os olhos fechavam-se, e Tomé caia numa lentidão encantada, e quanto mais caia, mais entregava-se a uma magia espantosa: ouvia as vozes do rio, dos campos de trigo, dos gladíolos, das lebres, das montanhas, da terra molhada, das árvores, de tudo que era vida, numa unidade e harmonia perfeita.
E quando escutava toda esta vida num compasso único, ouviu o bater sereno do seu próprio coração soar mais alto, até dele despontar um botão em flor que há muito aguardava o momento completo para desabrochar.
E assim, numa grande expiração, sob um céu semeado de sorrisos, escutou o grande silêncio.
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Pintura: Strong Dream, 1929, Paul Klee